domingo, julho 03, 2005

A EUROPA, O CRISTIANISMO E A TURQUIA

A União Europeia está num momento decisivo em que se questiona como nunca sobre o caminho a seguir. A crise do projecto de Tratado, que institui uma Constituição para a Europa, cruza-se com a crise das perspectivas financeiras e com as hesitações sobre o prosseguimento do alargamento, com especial incidência na questão da futura adesão da Turquia.
Neste contexto difícil, em que a vitória do «não» nos referendos francês e holandês libertaram sentimentos egoístas e xenófobos, é positivo que a Comissão Europeia tenha decidido manter o compromisso de abrir a negociações com vista a uma futura adesão da Turquia. O contexto actual exige, contudo, uma atitude de empenhamento acrescido na intervenção cívica por parte de todos os que entendem que essa adesão futura é do interesse da União Europeia. Não têm sido muitos os artigos inteligentes publicados na imprensa portuguesa sobre esta matéria e por isso recomendo a reflexão sobre “As fronteiras da Europa” do embaixador José Cutileiro na sua secção “O Mundo dos Outros” (Expresso, 25.6.2005).
Num mundo incerto e perigoso precisamos de ter dentro das nossas fronteiras uma Turquia herdeira do Ataturk num processo permanente de aproximação aos valores políticos da democracia, dos direitos humanos e do Estado de Direito. Não ignoramos nem o caminho já percorrido, nem o longo caminho que falta percorrer. Defendemos uma negociação exigente e rigorosa, mas somos contra qualquer tipo de discriminação que tenha exclusivamente como base o preconceito e o medo face ao seu peso demográfico ou ao facto de ser um país em que o islamismo é a religião dominante.
A União Europeia não pode ser um clube cristão, embora não deva silenciar o contributo que as diferentes confissões religiosas, com destaque para o cristianismo deram, ao lado e em conflito com outras correntes iluministas e laicas, para a formação do que são hoje as instituições e os valores democráticos, que caracterizam a União Europeia.
Há, aliás, um aspecto que como católico me é particularmente desagradável em alguns discursos que pretendem fundar na identidade cristã europeia a recusa da adesão turca, é uma certa degradação da mística em política e o facto de ignorarem que o catolicismo não é apenas uma religião europeia, mas por definição universal, não estando ligada a nenhuma forma particular de cultura, como ensina a Gaudium et Spes. Tudo isto é, aliás, coerentemente acompanhado pela desconfiança face às expressões culturais diferenciadas dos cristãos de outros continentes, que no mínimo são secundarizadas no quadro da Igreja Católica.
Mas como «Deus escreve certo por linhas tortas» não deixa de ser interessante verificar que os mais intensos e, ao que parece fraternos contactos de Bento XVI com os ortodoxos têm sido precisamente com os de Constantinopla, enquanto os de Moscovo se mantêm distantes.
A Turquia não é apenas um país islâmico, tem uma comunidade católica, com quatro ou cinco bispos, e o tradicional e muito respeitado Patriarcado Ortodoxo de Constantinopla. Além de ser historicamente um país em que o islamismo é a religião dominante, é simultaneamente um Estado laico, que defende essa laicidade da pressão dos grupos fundamentalistas que a pretendem pôr em causa.
A Turquia foi a fronteira oriental da Europa durante todo o período da Guerra Fria, o que se compreende dada a sua extensa fronteira com áreas estratégicas da então União Soviética. Hoje, é também a fronteira europeia com o Irão, o Iraque e a Síria.
A União Europeia é actualmente, mesmo depois dos alargamentos, uma pequena região do mundo em termos geográficos e demográficos, que se verá confrontada cada vez mais com a emergência de novos actores globais como a China e a Índia.
Vale a pena também reflectir na “Nota de rodapé “ do embaixador José Cutileiro, na já referida coluna do Expresso, a propósito do alargamento “Se os Balcãs ficarem de fora, tornarão a ser Balcãs mesmo. Na Sérvia, na Macedónia, na Croácia, na Bósnia, no Kosovo é o engodo da Europa que mantém as pistolas nos coldres e espadas embainhadas”.
Apenas posso testemunhar que quando no ano passado visitei a Bulgária, integrado numa delegação chefiada pelo então Presidente da Assembleia da República, Dr. Mota Amaral, foi também essa a conclusão que retirei dos contactos políticos efectuados.

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