domingo, outubro 02, 2005

ESCRAVA ISAURA

A versão da série televisiva brasileira “Escrava Isaura”, actualmente em exibição na RTP1, aborda a época da escravatura no Brasil. Muitas pessoas me têm manifestado o choque que lhes provoca o descobrirem, através das imagens da televisão, como foram possíveis formas de tratamento tão desumano e degradante. Indigna qualquer pessoa bem formada, por exemplo, o facto de ter sido possível amarrar outros seres humanos a um tronco e chicoteá-los até à morte, de alguém se considerar proprietário de outros seres humanos e de os comerciar como qualquer outro bem e se apropriar dos filhos das escravas, ao ponto do pai da escrava Isaura, que era um homem livre, ver recusada a possibilidade de comprar a filha para a tornar livre.
A escravatura foi uma situação de uma imensa brutalidade e violência de que esta série é apenas uma modesta ilustração.
Poder-se-á dizer que depois disso em pleno século XX, tivemos os campos de extermínio nazis e os gulags ou chamar a atenção para o sofrimento dos imigrantes que procuram atingir a Europa mesmo com risco de vida, como está acontecer actualmente em Ceuta. Tudo isto existiu ou existe, mas isso não nos dispensa de nos confrontarmos com a escravatura, já que ela está entranhada no nosso passado histórico e deixou marcas que não foram totalmente erradicadas. Daí que seja um serviço público emitir uma série televisiva como “A Escrava Isaura”.
Como escreveu Rysard Kapuscinski: “O comércio de escravos durou quatrocentos anos começou em meados do século XV e acabou, oficialmente, na segunda metade do século XIX. Há excepções porque no norte da Nigéria só acabou em 1936 (…). Os traficantes de escravos (sobretudo portugueses, holandeses, ingleses, franceses, americanos, árabes e os seus aliados africanos) despovoaram o continente e condenaram-no a vegetar apaticamente. Ainda hoje há faixas do território africano completamente desertas. África ainda não se recompôs deste pesadelo, desta enorme tragédia”, no seu livro “Ébano, Febre Africana”, Ed. Campo de Letras, 1998, pp. 98-99, cuja leitura se recomenda.
O colonialismo e a escravatura mudaram irreversivelmente o relacionamento entre povos e continentes. De acordo com Stephen Castles: “O colonialismo implicou a emigração além-mar de europeus, na qualidade de marinheiros, soldados, agricultores, comerciantes, padres e administradores. A mão-de-obra colonial foi conseguida primeiro através de migrações forçadas de escravos africanos (cerca de 15 milhões entre os séculos XV e XIX) e, mais tarde, através da utilização de serviçais, que eram transportados através dos impérios coloniais, atravessando enormes distâncias.”, no seu livro “Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios, dos Trabalhadores Convidados às Migrações Globais”, Ed. Fim De Século, 2005, p.25.
Por tudo isto, A Conferência Mundial das Nações Unidas “Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Conexa”, realizada em Durban, na África do Sul, em 2001, chegou a acordo sobre um texto que reconheceu e lamentou profundamente o enorme sofrimento humano e a trágica situação de milhões de homens, mulheres e crianças em consequência da escravatura e do tráfico de escravos transatlântico, do apartheid, do colonialismo e do genocídio. Tendo convidado a comunidade internacional a honrar a memória das vítimas dessas tragédias, a Conferência referiu que alguns Estados tomaram a iniciativa de lamentar ou expressar remorso, ou de apresentar desculpas, e pediu a todos os que ainda não contribuíram para que a dignidade das vítimas fosse restabelecida que encontrassem formas de o fazer.
Temos de reconhecer que pouco foi feito para dar a devida concretização às decisões da Conferência, que tiveram o voto favorável de Portugal, a cuja delegação tive a honra de presidir.
Temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que os netos de todos, esclavagistas e vítimas, nasçam e vivam juntos em condições de plena igualdade de oportunidades, valorizando o outro no que ele tem de livre e diferente.
Para que assim seja é preciso banir todas as formas de discriminação racial, considerar hoje a escravatura como um crime contra a humanidade, como deveria ter sido sempre considerado, mas é também importante fazer a história desse passado na perspectiva das vítimas, perceber o caminho que começa na escravatura, passa pelos serviçais até ás actuais relações de trabalho. Seria útil que a RTP1 realizasse, por exemplo, uma série televisiva sobre os escravos e os serviçais em Portugal e nas colónias portuguesas.
É preciso, sobretudo, educar e criar condições para o respeito pela dignidade de cada ser humano, para o diálogo e a cooperação. Somos todos gente, com direito a aspirar a viver em paz e a procurar realizar a vida que trazemos dentro de nós.

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