domingo, dezembro 31, 2006

A EXECUÇÃO DE SADDAM HUSSEIN

Não podia deixar de condenar a execução de Saddam Hussein, realizada, aliás apressadamente, quando ainda estava ser julgado por outros crimes de que era acusado, com um grande envolvimento dos Estados Unidos em todo este processo, tudo isto deixando muitas dúvidas de que tenha tido um julgamento justo, pese embora sejam públicos e notórios muitos dos graves crimes de que era acusado. Condeno a sua execução, como o fizeram líderes políticos e religiosos, associações de defesa de direitos humanos e cidadãos em todo o mundo.
Sendo contra a pena de morte em qualquer circunstância por convicção considero, que a sua execução foi «trágica» e «motivo de tristeza, embora se trate de uma pessoa culpada, por graves crimes» para usar a expressão utilizada pelo Vaticano, que acrescentou que «não contribuirá para que o Iraque se torne uma democracia» e que «o assassinato de um culpado não é caminho para a reconstrução da justiça e a reconciliação da sociedade».
Estranho a pressa em o executarem no começo da importante festividade muçulmana do Sacrifício, que começou neste sábado, o que é mais uma demonstração da insensibilidade cultural, que tem vindo a alimentar a guerra civil no Iraque, deitando gasolina sobre o fogo.
George.W. Bush, não tem razão quando afirma que a execução foi «um marco importante no rumo seguido pelo Iraque para se tornar uma democracia». Como iremos todos constatar rapidamente, a morte de Saddam Hussein irá contribuir para aprofundar ódios e multiplicar as vítimas indefesas do conflito.
Foi uma «resposta à barbárie pela barbárie», como afirmou a Federação Internacional de defesa dos Direitos Humanos.
Tudo isto nos deve levar a sermos mais determinados na luta a nível mundial pela abolição da pena de morte.

CIÊNCIA, RELIGIÃO E BIOÉTICA

O livro recentemente publicado por Miguel Oliveira da Silva sobre “Ciência, Religião e Bioética, no início da vida”, Editorial Caminho, 2006, é extremamente interessante e afasta-se das tradicionais dicotomias que paralisam actualmente a reflexão bioética.
Como refere, Miguel Oliveira e Silva «Para os defensores da bioética dicotómica, a verdade e as certezas são objectivas, tudo resultando dedutivamente de dois antagónicos e primevos mundos e modos de pensar».
Este extremar de posições é particularmente claro nos debates sobre o aborto entre os partidários «vida» e os da «escolha», que tendem a não ouvir os argumentos pertinentes de qualquer dos campos em confronto. Sobre o aborto, Miguel Oliveira e Silva é autor, aliás, de um livro fundamental para seguir de forma informada o debate em curso a propósito do referendo «Sete Teses Sobre o Aborto», Editorial Caminho, 2005.
Miguel Oliveira da Silva faz uma abordagem problematizante dos discursos e abordagens fechadas sobre questões de actualidade em matéria bioética, abordando questões como o estatuto do embrião e a dignidade da pessoa humana, a lei da procriação assistida, o diagnóstico genético pré-implantatório, as células estaminais e clonagem.
A sua reflexão beneficia do facto de ser obstetra-ginecologista no Hospital de Santa Maria, de ter para de ter doutoramento em Medicina e licenciatura em Filosofia, de pertencer desde 2003 ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, por eleição parlamentar. Tem também uma grande cultura teológica católica, tendo o seu último livro beneficiado das sugestões e apoios de dois teólogos, o Prof. Anselmo Borges e de Frei Mateus Peres. Tudo isto permite-lhe perceber que «…, por muito que isso custe aos paladinos de coerência dedutiva a partir de intocáveis valores e princípios, em Bioética pode perfilhar-se e defender, em situações distintas, posições existentes em diferentes Weltanschauung, em diferentes concepções do mundo».
O facto de não partilhar todos os pontos de vida defendidos pelo autor, não me impede de considerar muito importante a edição destes seus livros que representam um sério e corajoso esforço de pensar a complexidade dos desafios éticos e jurídicos que nos coloca o prodigioso desenvolvimento das ciências da vida. Só através do livre confronto de pontos de vista, sem apriorismos nem preconceitos, que ultrapasse a bioética dicotómica. Há que ter em conta na procura de respostas que sejam o mais adequadas possíveis não apenas valores como a defesa da vida ou da livre escolha, mas também valores como a responsabilidade e a compaixão, que etimologicamente significa partilha do sofrimento alheio.
A referência à “Religião” no título do seu último livro não é abusiva, porque Miguel Oliveira da Silva faz uma abordagem invulgarmente detalhada da evolução não só do ensinamento oficial da Igreja Católica sobre as matérias abordadas, mas também da história da controvérsia teológica que o tem acompanhado, questionando várias dessas tomadas de posição. Fá-lo em nome próprio o que é muito importante para que outros sigam o seu exemplo e se habituem a pensar pela sua própria cabeça e a assumir as suas próprias responsabilidades éticas.
Espero que este(s ) livro(s) inspirem os debates em curso designadamente o do referendo sobre o aborto e despertem nos ensaios e estudos sobre as questões bioéticas abordadas.

domingo, dezembro 24, 2006

RESPEITO, DIÁLOGO E COOPERAÇÃO

O ano que está a terminar foi marcado por diversas manifestações de intolerância, por graves conflitos armados, por numerosas e graves violações dos direitos humanos, pelo alimentar da ideia de que os conflitos entre religiões e culturas marcarão cada vez mais o nosso presente e o nosso futuro.
Foi também marcado por muitos gestos de colaboração entre crentes, entre crentes e não-crentes, por muito empenhamento de gente generosa e solidária no combate à fome, à doença, na luta contra o sofrimento inútil e evitável, pelo desenvolvimento sustentável, pela inclusão e a cidadania.
A comunicação social, muitas vezes, desempenhou um papel de bombeiro pirómano, valorizando todas as manifestações de estupidez e intolerância, ignorando ou desvalorizando as iniciativas, movimentos e personalidades que se batem, não apenas pelo diálogo, pela cooperação entre todos os seres humanos independentemente das suas convicções espirituais, religiosas ou filosóficas. A comunicação social contribuiu, noutros casos, para denunciar situações de exclusão, discriminação, deu voz aos que querem um futuro melhor para todos.
O futuro não está, por isso, condenado a assistir ao triunfo da intolerância, da desconfiança e do conflito. Como sabemos que esperar não é saber, estamos ao lado de todos os que se batem dia a dia pelo respeito da dignidade de todos e cada um dos seres humanos, pelo diálogo inter-religioso e inter-cultural, pela inclusão e pela cidadania. Temos uma sólida confiança no que Teilhard de Chardin designava progresso das coisas, num sentido positivo para a história humana. Não nos resignamos a que as pessoas tenham medo do futuro, se tornem mais desconfiadas e pessimistas. Temos esperança que o futuro, apesar das dificuldades e dos perigos, pode ser melhor. Confiamos nas possibilidades de cada um de nós contribuir para que assim seja, se não nos demitirmos das nossas responsabilidades de cidadãos.
Hoje há uma razão para alimentar a nossa esperança. Comemoramos o Natal, o nascimento de Jesus. Lucas no seu Evangelho dá-nos a boas notícia: «Não temais, pois vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo. Hoje, na cidade de David, nasceu-nos um Salvador, que é o Messias Senhor… Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade».
Saúdo todos os homens e mulheres de boa vontade, designadamente, que constroem blogues e sítios na Rede, com os seus posts ou comentários, crentes ou não-crentes, agnósticos ou ateus, que se empenham na construção de uma sociedade mais justa e fraterna.
Quero acrescentar que é motivo de esperança e um motivo de compromisso o diálogo inter-religioso que tem vindo a ser desenvolvido em Portugal. Cristãos, muçulmanos e judeus tendem a conhecer melhor as tradições espirituais uns dos outros, a ter uma sensibilidade semelhante sobre o lugar da expressão religiosa no espaço público.
Faranaz Keshavjee, a maior teóloga portuguesa muçulmana da Comunidade Ismailita, na sequência da sua participação num colóquio no Centro de Reflexão Cristã a que nos referimos aqui, publicou um artigo intitulado “Jesus, Profeta do Islão” no jornal “Público”(19-12-2006), em que retoma um pouco do que então disse, que pode ler aqui ou aqui. O seu texto insere-se na linha do que tem sido a intervenção pública de Aga Khan, o Imã dos Ismailitas, que tem sublinhado o que existe de comum entre as religiões de Abraão.
Registo algumas palavras: «…posso dizer com convicção, e com conhecimento, que devemos celebrar o Natal e o nascimento de Jesus numa perspectiva religiosa e espiritual de grande importância no mundo islâmico». E acrescentou: «No meu primeiro de muitos natais a celebrar, Inshaallah, fica apenas um desejo sentido: que da mesma forma como quis conhecer o Outro, que afinal faz parte de mim, num desejo puro da minha curiosidade intelectual, humana e afectiva, também espero que todos esses “outros” tenham a mesma vontade e o mesmo desejo genuíno de conhecer também eles a “minha casa”; gostaria que reconhecêssemos nos outros crentes, laicos ou religiosos, não apenas as diferenças, mas as mesmas ansiedades, as mesmas dúvidas, e a mesma esperança, que afinal nos tornam iguais, isto é simplesmente humanos e vulneráveis perante as complexidades da vida».
Faranaz Keshavjee toca aqui dois pontos essenciais o “Outro” afinal faz parte de mim, diria, por outras palavras, o “Outro” não é apenas diferente, é também o mesmo que eu sou. Só se pode gostar de quem se conhece e é também por isso que é importante que procuremos conhecer a casa em que habita o “Outro” sem termos medo de descobrir que é muito diferente do que imaginávamos na nossa ignorância e preconceito, sem termos medo de nos deixarmos seduzir pela sua verdade e autenticidade.
Neste Natal digamos não ao medo de conhecer de ir à descoberta do “Outro”. Os que são cristãos sabem que a Bíblia cristã repete 365 vezes, tantas quantos os dias do ano, «não tenhas medo».
Com este apelo ao respeito, ao diálogo, à cooperação entre todos, à confiança e esperança no futuro, desejo a todos um Bom Natal.

domingo, dezembro 17, 2006

ANTÓNIO CÂMARA-PRÉMIO PESSOA 2006

Uma das boas notícias desta semana foi a atribuição do Prémio Pessoa 2006 a António Câmara, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova, investigador e empresário da YDreams, empresa de tecnologias que fundou e que nasceu naquela Universidade e que hoje tem delegações em Barcelona, no Rio de Janeiro, em Xangai e no Colorado (EUA).
A atribuição deste prémio vem sublinhar a importância em ligar investigação, ensino e empreendedorismo, estimular a iniciativa e a criatividade dos cientistas e investigadores e das universidades portuguesas para encontrarem formas de promover a nova economia assente no conhecimento.
Temos de proceder a uma rápida e radical mudança de mentalidades, de métodos e de perspectivas se queremos criar uma dinâmica sustentada de desenvolvimento que não condene os jovens investigadores e cientistas à emigração e, que, pelo contrário torne Portugal atractivo para os melhores investigadores e cientistas de todo o mundo.
Neste processo todos são imprescindíveis: o Estado, as universidades, as empresas e a iniciativa empresarial de cientistas e investigadores.

CIMEIRA UE-ÁFRICA EM PORTUGAL

É um boa notícia o anúncio da realização no segundo semestre de 2007 da segunda Cimeira EU-África em Portugal durante a Presidência Portuguesa da União Europeia. Estão de parabéns o Governo e a diplomacia portuguesa, que conseguiram ultrapassar os obstáculos que desde 2003 têm impedido a sua realização.
Revela sensibilidade aos múltiplos laços que tornam a Europa e a África, continentes que devem saber acordar os termos de uma nova parceria estratégica que promova a paz e o desenvolvimento.
Num momento em que a China e os Estados Unidos procuram reforçar a sua presença em África seria estupidez e cegueira política se Portugal e a União Europeia não procurarem aprofundar em novas bases os laços já construídos.
Portugal deverá ter como objectivo estratégico nacional permanente, neste ou noutro quadro, reforçar os laços com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa e, em geral, com os milhões de falantes de português do continente africano. O futuro da Língua Portuguesa passa tanto pela África como pela Europa, sem esquecer o papel fundamental do “continente” que é só por si o Brasil.

A HORA DE MARIA JOSÉ MORGADO

A designação da Procuradora-Geral Adjunta, Maria José Morgado, pelo Procurador-Geral da República, Pinto Monteiro, para coordenar as investigações de todos os inquéritos e processos instaurados ou a instaurar conexos com o Apito Durado é uma boa notícia. Podemos ter confiança na sua seriedade, competência e determinação em cumprir as funções que lhe foram confiadas.
Maria José Morgado tem uma experiência de combate eficaz à corrupção. Teve um excelente desempenho à frente da Direcção Central de Investigação da Corrupção e Criminalidade Económica e Financeira (DCICCEF) da Polícia Judiciária, tendo passado pelas suas mãos processos que envolveram conhecidos dirigentes desportivos.
A designação de Maria José Morgado foi bem recebida pela generalidade dos agentes políticos e comentadores e foi interpretada como um sinal do empenhamento do novo Procurador-Geral da República no combate à corrupção.
Vasco Pulido Valente considerou esta semana que a corrupção no futebol «Não é a mais grave, não é a mais comum, nem sequer coitada, a mais prejudicial … é uma parte ínfima da corrupção geral do país. E serve sobretudo para a esconder» (vide, Ai Carolina, Público, 15-12-2006).
Não creio que se devam subestimar as ligações que, nalguns casos, parecem existir entre corrupção no futebol, nas autarquias locais e na construção civil. A agressão de que foi vítima o ex-vereador o PS, Ricardo Bexiga, deve levar-nos, aliás, a interrogarmo-nos sobre as possíveis conexões entre diferentes tipos de criminalidade. A propósito de corrupção recomendo a leitura do livro de Maria José Morgado e José Vegar “O inimigo sem rosto, Fraude e Corrupção em Portugal” editado pela Dom Quixote, em 2003.
Aconselho também a leitura do artigo “As mutações da máfia mansa” de Saldanha Sanches, Expresso, 16-12-2006).
Mesmo que a corrupção no futebol seja uma parte ínfima da corrupção, a nomeação da Maria José Morgado cria uma dinâmica cultural anti-corrupção que fará com que outras formas de corrupção não possam ser escondidas.
Aliás, Vasco Pulido Valente parece estar desatento da “Operação Furacão” cujo alvo é bem distinto do futebol e que conheceu importantes desenvolvimentos recentes com a análise de operações financeiras no off-shore da Madeira.

domingo, dezembro 10, 2006

IRAQUE - POR QUEM OS SINOS DOBRAM?

O relatório “The way forward. A new approach” recentemente divulgado nos Estados Unidos sobre a situação no Iraque, na sequência da iniciativa da criação da comissão Baker-Hamilton pelo Congresso dos Estados Unidos da América, é um documento que vem reconhecer o fracasso da intervenção no Iraque, e a necessidade do que designa por uma nova aproximação política, traduzida em 79 propostas. É um documento importante que honra o funcionamento das instituições americanas, que contou com o contributo de 44 peritos, que ouviu 170 pessoas, que teve em conta as opiniões expressas por Tony Blair, por membros do governo do Iraque e inclusive pelo embaixador do Irão nas Nações Unidas.
Tudo isto vem dar razão aos que, como nós, sempre consideraram um erro, para além de uma grave violação do direito internacional, a intervenção militar no Iraque e contra ela se manifestaram nas ruas.
Não temos nenhuma satisfação em dizê-lo, após toda a destruição humana e patrimonial que sofreu o Iraque, perante os milhares e milhares de mortos, iraquianos, americanos, ingleses e de muitas outras nacionalidades. Temos a consciência de que toda a região se tornou mais perigosa e se agravaram ódios entre correntes políticas e religiosas.
Que dizer dos dirigentes políticos e militares que nos arrastaram para este beco, em nome da existência de armas de destruição maciça, cuja existência nunca conseguiram provar? Que dizer da arrogância daqueles intelectuais e académicos que reunidos sobre a designação de “neoconservadores” tudo fizeram para promover e justificar esta intervenção, com a promessa de que a invasão do Iraque seria recebida pelos iraquianos como uma libertação? Os políticos que os seguiram começaram a cair, muitos milhares de pessoas foram já mortas como consequência da intervenção militar e da desordem existente, mas não é claro de que forma se exercita a responsabilidade dos intelectuais e académicos quando cometem erros de apreciação tão grosseiros e de tão funestas consequências.
É trágica a situação a que se chegou e não há fórmula mágica que garanta a resolução dos problemas do Iraque e da região. O que é evidente é que começou a contagem decrescente para a retirada das topas americanas e aliadas do Iraque e que tudo deve ser feito para construir, por via diplomática, um novo quadro político e institucional, quer no Iraque quer na região que evite o caos e dê oportunidades à paz.
De acordo com o relatório «Ninguém pode garantir que qualquer medida seja capaz de parar o conflito sectário, a escalada da violência e o deslize para o caos. Se a actual tendência prosseguir, as potenciais consequências são gravíssimas». (vide Público, 7-12-2006).
Perante as hesitações e contradições de George W. Bush, a resposta à pergunta que formulámos, só pode ser, os sinos continuam a dobrar por todos nós.

PS 1. O acordo obtido na Concertação Social sobre o aumento do salário mínimo nacional, actualmente designado por retribuição mínima mensal garantida (RMMG) é uma boa notícia e, quer o Governo, quer os parceiros sociais estão de parabéns por terem dado um passo para atenuar a situação de pobreza de muitos trabalhadores.
O aumento da RMMG para 403,00 euros em 2007, já foi aprovado pelo Governo, e foi assumido o compromisso de que continuará a aumentar de forma sustentada acima da inflação esperada até 2011, atingindo então 500,00 euros.
É-nos grato identificar e apoiar medidas justas que contribuem para que se caminhe no sentido de uma maior igualdade de oportunidades.
Saudamos também o anunciado alargamento da cobertura da rede do ensino pré-escolar. Criar condições para que todas as crianças que vivem em Portugal, independentemente da sua origem, condição social ou da área geográfica em que vivam, tenham acesso à educação pré-escolar deve ser um objectivo prioritário para todos os que aspiram à criação de condições para a efectivação da igualdade de oportunidades entre todos os cidadãos.

PS 2 Não podemos silenciar a preocupação com que encaramos a recente publicação do diploma que estabelece o regime comum de mobilidade entre serviços dos funcionários e agentes da Administração Pública visando, ao que se afirma, o seu aproveitamento racional. Foi pena que não tenha havido um acordo na Concertação Social sobre a Reforma da Administração Pública. Se é certo que as partes interessadas neste caso não se restringem aos parceiros sociais aí representados, mas são todos os cidadãos, mesmo assim poderia ter-se introduzido por essa via um factor de racionalidade nas medidas anunciadas. Sem uma prévia definição das tarefas essenciais do Estado, receamos que se enverede em Ministérios mais “zelosos” por uma política de cortes orçamentais cegos com o pretexto da mobilidade. Se assim vier a acontecer estar-se-á a comprometer o tratamento equitativo dos funcionários públicos, mas também a possibilidade de assegurar uma Administração eficiente, mais amiga dos cidadãos e do desenvolvimento económico. O que é normal é ser a definição das tarefas essenciais do Estado a determinar a reabilitação das finanças públicas e não o inverso.

domingo, dezembro 03, 2006

CRISTIANISMO E ISLAMISMO - NOVOS DINAMISMOS

No dia em que Bento XVI desembarcou na Turquia realizaram-se em Lisboa duas importantes iniciativas.
O Centro de Reflexão Cristão promoveu a segunda Conferência do Ciclo “Diálogos Sobre Jesus”, intitulada “Jesus Profeta do Islão”, que contou com uma assistência numerosa e interessada, que ouviu com agrado as intervenções do Prof. António Dias Farinha, da Dr.ª Faranaz Keshavjee e do Dr Artur Cunha de Oliveira, que foi moderada pelo Dr. Guilherme d’Oliveira Martins.
Ficou claro para todos o lugar de relevo que o Alcorão atribui a Jesus, filho Maria, Profeta, Verbo de Deus e Messias, concebido virginalmente por Maria, mas que não é Deus, não foi crucificado, nem morto, mas Deus elevou-o para Ele. O Alcorão e as tradições islâmicas têm afinidades com as narrativas sobre Jesus dos Evangelhos canónicos de Mateus, Marcos e Lucas, manifestando também ecos de Evangelhos apócrifos. Particularmente interessante, e diria mesmo perturbante, foi a intervenção e o testemunho da mais notável teóloga muçulmana portuguesa, da corrente xiita ismaili, Faranaz Keshavjee do seu encontro com o Jesus muçulmano.
No mesmo dia realizou-se outro encontro, promovido pela Paróquia de Nossa Senhora dos Navegantes, no Parque das Nações, em que se discutiu “O Islão no Ocidente”, com a participação do Padre Peter Stilwell, do imã da Mesquita de Lisboa, David Munir, muçulmano sunita, e de Faranaz Keshavjee.
A visita de Bento XVI à Turquia foi iniciada da melhor forma e viria a confirmar, ultrapassando as minhas previsões, feitas contra os profetas da desgraça, de que a visita iria correr bem e marcar o futuro da Igreja Católica nas suas relações com as Igrejas Ortodoxas e com o Islamismo, bem como as relações entre a Turquia e a União Europeia. Acertei porque confiei em Bento XVI e nos turcos e não fiquei desiludido.
Há pequenos gestos de Bento XVI que gostaria de sublinhar pela sua relevância: o facto de quer quando desembarcou, quer quando foi prestar homenagem a Ataturk não ter ostentado a cruz, no respeito pelos princípios da democracia laica turca e a forma como visitou a Mesquita Azul onde virado para Meca rezou a Deus, a quem todos cristãos, muçulmanos e judeus prestam culto. Como referiu o Mufti de Istambul, Mustafa Cagrici, «Ele fez prova de uma grande cortesia não fazendo o sinal da cruz no fim da oração e cruzando as mãos sobre o ventre como todos os muçulmanos durante a oração” (Público, 02-12-2006). Acrescente-se que durante a oração ostentou, com naturalidade, a cruz sobre o peito. A vida é feita de pequenos nadas, que muitas vezes são tudo.
Se a viagem de Bento XVI à Turquia abriu novos caminhos para uma descoberta mútua, um maior respeito e cooperação entre cristãos e muçulmanos, veio confirmar os que dentro da Igreja Católica se têm esforçado para promover o diálogo entre católicos e muçulmanos como tem acontecido entre nós através da acção, designadamente, do Padre Peter Stilwell, com o apoio do Cardeal Patriarca de Lisboa.
Contribuiu também para que a importância estratégica de que se reveste a futura adesão da Turquia à União Europeia seja compreendida pelos cidadãos europeus.
A notável entrevista que D. José Policarpo deu ontem ao jornal “Público” merece ser lida e meditada. É justo dizer que a entrevista foi realizada com a inteligência e o rigor que caracterizam o jornalista António Marujo. Gostaria de sublinhar, para além da importância que atribui à futura adesão da Turquia à União Europeia, a valorização que faz dos dinamismos no interior do Islão a que importa estar atento, referindo três grandes movimentos: o desenvolvimento da mística; a expressão social da fé islâmica; o movimento da dignidade e da promoção da mulher. Três movimentos profundos no interior do islamismo, de que fala com conhecimento de causa e que são ignorados pela informação superficial que alimenta o preconceito contra os muçulmanos.
Esta semana com tudo o que de positivo trouxe não resolveu magicamente as questões e as tensões acumuladas ao longo da história entre cristãos e muçulmanos, entre muçulmanos e cristãos. Mas esta semana permite alimentar a esperança de novos dinamismos ente o cristianismo e o islamismo. Como afirmou D. José Policarpo na citada entrevista: «…o Islão também tem convergências [com o Cristianismo]. Se um dia for possível ao Islão unir-se com o Cristianismo num projecto de civilização as convergências virão ao de cima. O diálogo é difícil estamos a começar, o conceito de racionalidade é diferente. Mas há fenómenos importantes dentro do Islão…».
Vivemos um momento raro de diálogo e respeito mútuo, que há que prosseguir, sem ignorar que este diálogo tem muitos inimigos, que preferem o confronto e que tudo farão para lhe colocar obstáculos.
Depois desta semana, por maiores que venham a ser as dificuldades temos o dever de prosseguir. Sabemos que outro mundo melhor, e menos perigoso do que aquele em que vivemos, é possível.