domingo, setembro 06, 2009

TED KENNEDY - ELOGIO DE UM HOMEM IMPERFEITO

Há agentes políticos, culturais ou sociais, religiosos, agnósticos ou ateus, que procuram transmitir, ou que são apresentados com uma imagem de exemplaridade, que os erguem como figuras que as multidões endeusam e adoram. Não deixo de me interrogar se essas manifestações não são uma “religiosidade de substituição” e se o facto de eu ser católico me torna ateu perante esses cultos.
O cidadão comum é trabalhado pelos médias para amar, endeusar ou para odiar. É mais difícil aceitar que algumas destacadas figuras públicas, homens ou mulheres, tiveram aspectos positivos e negativos na sua vida pessoal e actuação pública, que apesar de serem homens ou mulheres imperfeitos fizeram grandes obras, que ajudaram muitas pessoas a viver com dignidade e que por isso merecem o nosso respeito e gratidão, o nosso afecto, mas não a nossa adoração.
Devo dizer que andava a hesitar escrever sobre a morte de Edward Moore Kennedy, conhecido por Ted Kennedy, que podem conhecer melhor aqui, mas foi o inteligente artigo de Anselmo Borges no DN aqui, que me decidiu a fazê-lo, bem como, o facto da sua morte não ter merecido a referência que merecia nos blogues, com honrosas excepções, nomeadamente, aqui ou aqui.
Ted Kennedy disse, numa carta que tinha enviado recentemente ao Papa Bento XVI, que sabe que foi um homem imperfeito, o que ninguém contestará. Não é por isso que merece ser recordado, mas pelo facto de ter sabido sempre recomeçar de novo e ter sido sempre fiel a uma atitude e a uma prática política que teve objectivos muito determinados. Na carta referida por Anselmo Borges, Ted Kennedy afirma: “Dei o meu melhor para embandeirar os direitos dos pobres e abrir portas de oportunidades económicas. Trabalhei para receber os imigrantes, combater a discriminação e ampliar o acesso aos cuidados médicos e à educação.” Poderia ter acrescentado que lutou sempre pelos direitos civis, pelos direitos dos imigrantes, pelo controlo das armas de fogo, pelo salário mínimo, para assegurar a cobertura de saúde dos milhões de americanos sem seguro de saúde, contra a discriminação em razão do sexo, ou da orientação sexual, pela despenalização da interrupção voluntária da gravidez.
Barack Obama, cuja eleição apoiou de forma decisiva, afirmou na missa de corpo presente que teve lugar na basílica de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro de Boston (Massachusetts): “O mundo lembrar-se-á de Ted Kennedy como defensor dos pobres, a alma do Partido Democrático,” e um grande legislador. Foi também um amigo dos portugueses e dos luso-americanos, que sempre o apoiaram, tendo sido um dos grandes defensores norte-americanos da causa de Timor-Leste e sendo responsável do Azorean Refugee Act, que permitiu a mais de 1500 açorianos afectados pelo vulcão dos Capelinhos (Faial) a emigração para os Estados Unidos.
As suas memórias intituladas True Compass, para cuja redacção contou com o apoio de Ron Powers, autor de uma biografia de Mark Twain, serão publicadas no dia 14 deste mês, permitirão conhecer melhor acontecimentos marcantes da história americana contemporânea, o assassinatos dos seus irmãos John e Robert Kennedy, as causa por que se bateu, as suas contradições e os episódios dramáticos que teve de superar, as leis para cuja aprovação contribuiu de forma decisiva e que redesenharam a América contemporânea, bem como, a sua luta corajosa contra o cancro que o vitimou.
Espero que possamos contar em breve com uma boa tradução deste livro em português e que possamos perceber melhor como é que Ted Kennedy, que assumiu ter sido um homem imperfeito, contribuiu de forma decisiva através de uma intervenção política continuada para que os Estados Unidos se tornassem uma país mais democrático, mais justo, com maior igualdade de oportunidades para todos, sem o que Barack Obama não poderia ter sido eleito presidente da República.
O sucesso de algumas das suas causas, designadamente em matéria de acesso universal à saúde não está ainda garantido e defronta grandes resistências e isso preocupava-o. Devemos recordar que considerou que com Barack Obama “o sonho continua vivo”.
Por tudo isto não podemos deixar de estar gratos pelo legado político que deixou e perceber melhor com o seu exemplo como a luta política pode ser um compromisso exigente com a construção de sociedades mais justas, que respeitem a dignidade e os direitos de todos e assegurem maior igualdade de oportunidades de realização pessoal.

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