segunda-feira, abril 06, 2015

MANHÃ DE ADÍLIA LOPES


O recente livro Manhã publicado pela Adília Lopes é um livro belíssimo, editado com o bom gosto das edições da Assírio & Alvim e, desde logo, da capa de Ilda David.

É um livro que reúne poemas, que integram uma autobiografia poética, uma viagem da autora à procura não apenas do tempo perdido, mas da sua própria identidade, mesmo se adivinhamos uma sábia mistura de memória e fingimento poético.

Algumas memórias podem suscitar perplexidades: “Em Colares, vi um buldogue branco anão em cima de uma coluna branca no jardim, de uma vivenda. É a minha recordação mais antiga (…).”

Este livro é também inseparável das excelentes fotografias que reproduz, nomeadamente, a do verão de 1964 e a de agosto de 1977, as minhas preferidas.

Adília Lopes tem sabido estar à altura do que lhe tem acontecido e transmutar em criação poética e literária os desafios com que tem sido confrontada ao longo da vida.

Di-lo, de forma alusiva: (…) Não foi por estudar muito que adoeci dos nervos aos 21 anos, foi por viver num ambiente deprimente (…).”

Junta-lhe o humor e a ironia quando escreve em Dansar: “(…) Enquanto danso, rezo pela paz. Enquanto danso, descanso. O meu pâncreas melhora. Só coisas boas (…).” Faz ironia, com uma total liberdade interior, com aquilo com que se confronta: “Eu sou 8 ou 80. Até no peso. Aos 26 pesava 39 quilos kg. Aos 50 pesava 105kg. Sou certamente a Alice no País das Maravilhas”.

A sua ironia e o seu humor é também um instrumento de intervenção.

Não me admiraria que alguns dos seus poemas se viessem a tornar virais para os defensores mais militantes dos direitos dos animais, como em 2 poemas do dia de S. Francisco de 2014Santa Teresa dizia / quando penitência, penitência / quando perdiz, perdiz “ e acrescenta, com ironia, “Para a perdiz / é sempre penitência”.

A arte poética de Adília Lopes mergulha no quotidiano, mas é tudo menos ingénua, alimenta-se de um diálogo íntimo com os autores que fazem parte de um exigente cânone literário, como, por exemplo, Almeida Garret, Sophia, Alexandre O `Neil, Marcel Proust, Robert Louis Stevenson, James Joyce, Yeats, Bernanos, Rimbaud, Selma Lagerlof, Barthes, Cristina Campo, mas também de A colher de pau de Maria de Lurdes Modesto, Enid Blyton a Condessa de Ségur, Agatha Christie.

Este é um livro de uma poetisa atenta ao quotidiano que podemos encontrar num café perto de casa a olhar para a televisão enquanto toma notas e escreve, mas sempre atenta à dor, à injustiça, ao que estraga a vida das pessoas e dos seres vivos. É preciso perceber o que de radical se esconde por baixo de uma aparente simplicidade, quando escreve. “Em Lisboa / de manhã / na sinagoga / na mesquita /na igreja de Arroios/ uma mulher/ a aspirar.”

Não foi em vão que leu muito jovem em francês, Mémoires d`une jeune fille rangée de Simone de Beauvoir, como refere neste livro.

A sua poesia é por tudo isto uma poesia não apenas autobiográfica, mas uma poesia comprometida com a nossa vida. Faz-nos falta lê-la em voz alta.